(Texto original: GESTALT THERAPY AS A TRANSPERSONAL APPROACH)
Tradução-livre: Antonio Vaszken Dichtchekenian
EMBORA A PSICOLOGIA TRANSPESSOAL TENHA se diferenciado como uma abordagem especifica dentre a “3a Força” que veio a ser chamada Humanista, não restam dúvidas de que a Psicologia Humanista - que Maslow apontou como uma alternativa às psicologias mecanicistas de Freud e Pavlov e seus seguidores - se referem à aquilo que é propriedade humana nos seres humanos, junto com valores, significado, o desenvolvimento da consciência e, de modo geral, “os maiores potenciais da natureza humana”. Foi um termo ambíguo usado para uma psicologia implícita ou explicitamente conectada ao lugar que a espiritualidade ocupa na vida humana, pois o Humanismo no passado servira para descrever uma orientação filosófica secular, a palavra faz alusão neste contexto a uma oposição entre uma visão centrada no humano, e uma perspectiva teocêntrica. De fato, é possível distinguir dentre os humanistas, aqueles mais orientados para o Humanismo (no sentido tradicional da palavra) daqueles que têm uma orientação mais Transpessoal.
Ainda que nomes comuns possam ser confusos, e que não seja entendido que apesar de suas origens psicanalíticas e das influências de sistemas gerais de pensamento - as maiores diferenças características da Gestalt-terapia são, realmente, transpessoais.
Por transpessoal quero dizer aquilo que está além do “pessoal” no sentido de personalidade condicionada e individual. “Ao invés de impessoal”, escreve Rudhyar, que iniciou este termo em 1929 (com certeza antes de qualquer outra pessoa), “vamos usar outra palavra mais significativa - Transpessoal. O tipo pessoal de comportamento (ou sentimento, ou pensamento) é enraizado no significado e na forma condicionada de personalidade. Uma forma transpessoal de comportamento é aquela que parte do Self não-condicionado do Homem, utiliza a personalidade apenas como um instrumento” (1975).
Jung, dizem ter usado esta palavra algumas vezes, possivelmente com o significado dos conteúdos do inconsciente coletivo, em oposição aos conteúdos do inconsciente pessoal e da consciência. Na forma de arquétipos, Jung modificou o espiritual em uma psicologia mecanicista, do mesmo jeito que a Psicologia Transpessoal faz hoje. Ainda que a Gestalt-Terapia tenha sido reduzida a uma abordagem humanista ao invés de uma abordagem transpessoal - atualmente quando ambos os termos são dominantes no sistema de pacotes psicológicos - reflete uma tendência (pelo menos nos anos anteriores) de associar o transpessoal mais com o campo visionário, estados alterados de consciência e o paranormal, do que com a base de todos eles: a própria consciência.
Entretanto, o fato é que a consciência é transpessoal. Ou, usando um termo mais recente, espiritual. As tradições mais articuladas deixam isso muito claro. Budismo (da raiz bodh, “desperto”) não é um estado específico de consciência ou da mente, mas a própria mente, o recipiente. Talvez mais explícito seja o Sufismo, que deixa claro que o objetivo do despertar do estado restrito de consciência que é a consciência ordinária, está além dos estados espirituais.” São manifestações derivadas da própria consciência e o resultado da influência transpessoal sobre o pessoal (ou, nos termos tradicionais, do espiritual sobre o ego) que é a explicação comumente usada para o novato “se embebedando com um pouco de vinho” (ou seja, manifestando uma abundância de fenômenos extáticos e visionários no pequeno baraka, ou “força espiritual”).
A tendência natural do iniciante de ficar mais animado sobre o fenômeno produtivo da “embriaguez espiritual” do que a consciência que torna isso possível, é comentada numa estória espiritual coletada por Idries Shah em “Tales of the Dervishes” (Contos dos Dervishes). É um conto de um jovem que foi guiado por um dervishe a um local onde ele evocou a Terra para se abrir e instrui-lo a descer e encontrar um candelabro de ferro. Assim que o jovem desceu até o local específico, ele viu belíssimos tesouros que lotavam seus braços com jóias e ouro. Então, ele viu o candelabro e decidiu levá-lo junto também. Quando ele saiu, entretanto, o dervishe não estava mais lá e seu tesouro desaparecera. Apenas restava o candelabro. Isso é apenas o começo da estória, que conta como este candelabro era mágico e podia ser utilizado de um certo modo para conquistar tesouros, e como o jovem, em função de sua ganância e pouco conhecimento, perdeu-o. Este pequeno exemplo serve para ilustrar a relação entre consciência e os estados “espetaculares” de consciência. Consciência, como a conhecida galinha e os ovos de ouro, é o verdadeiro tesouro, mas a nossa tendência é a de não valorizá-la.
Considero que uma mudança dos conteúdos mentais para a própria consciência pode bem ser a característica mais marcante das terapias humanistas e transpessoais; ainda que esse vazio na prática psicoterapêutica, precedeu um vazio correspondente na teoria, e consequentemente (apesar do interesse crescente em meditação) a natureza transpessoal da consciência não foi definida corretamente.
O fato de a Gestalt-Terapia ser normalmente reduzida a Humanista ao invés de Transpessoal reflete esta falta de precisão conceitual, embora a mais compreensível se considerarmos que a espiritualidade da Gestalt-Terapia é, de um certo modo, disfarçada. Com esse, “de um certo modo” me refiro a rejeição de Perls pela religiosidade ordinária. Sua prática comum de responder ao papo “espiritual” (e outros assuntos também) como um sintoma neurótico foi apropriado, entretanto, é mais espiritual ainda desafiar o paciente a se relacionar consigo mesmo além dos campos simbólico e ideal. Me recordo da perplexidade de um religioso, por exemplo, para quem Perls respondeu sobre um assunto espiritual “Me sinto separado de você pelo seu Deus.” Ele esclareceu: “Você coloca Deus entre você e eu.” Claro que estava se referindo à tendência semi-universal de complicar ações diretas e espontâneas no aqui-agora com modos ideológicos de relação. Houveram muitos, com certeza, que deixaram de acreditar nele como autoridade espiritual assim que ele magoou suas crenças sacrosantas, e isso colaborou para a visão de um homem e sua obra como anti-espiritual.
Espiritualidade não é matéria de ideologia, entretanto, a natureza transpessoal de uma teoria é um fato que ultrapassa afirmações a respeito dela. A experiência satori ou despertar pessoal de Perls, como descrita em sua autobiografia, e sua experiência com meditação (ele disse a mim, certa vez, que vivia em Esalen, que praticava pelo menos uma hora diária) sem dúvida serviram de fundo para a forma da Gestalt-terapia como um equivalente moderno da prática Budista. Isso aconteceu particularmente enquanto esteve na Califórnia e talvez sem seu conhecimento.
A prática budista é essencialmente treinamento da consciência com moralidade. Assim também é Gestalt-Terapia, ainda que a palavra moralidade pareça ser distante de espiritualidade. Inasmuch como o processo terapêutico da Gestalt busca debilitar aquilo que Karen Horney (analista de Perls) chamava de “tirania dos debeísmos” (1950) com o qual a moralidade ordinária anda de mãos dadas, a teoria a princípio pode ser vista tanto como antiespiritual quanto antimoral. Uma visão mais profunda, entretanto, mostra um contexto (especialmente em grupos) para uma prática de virtudes como a coragem e autenticidade, que são a essência central do desenvolvimento moral - além das regras específicas de comportamento. De fato, expressei em outro lugar, as ações do terapeuta devem ser compreendidas, de um ponto de vista, como reforçamentos negativos de comportamentos inautênticos e apoio da auto-expressão genuína.
Moralidade deve ser entendida como o trabalho interpessoal da espiritualidade tradicional. Os primeiros mestres de várias culturas perceberam claramente o quão decepcionante o desenvolvimento mental é, se as práticas contemplativas são realizadas sem a fundação de uma prática orientada pela transcendência de comportamentos compulsivos e aversivos conhecidos como paixões. Sem mentir, sem roubar, sem matar ou machucar são os modos orientais de crescimento, não apenas moralidade, como vieram a ser em nossa tradição-mosaico, mas em Patanjali, preliminares do Samadhi e, em “O Caminho dos Oito Passos” de Buda, aspectos da vida correta e do esforço correto, que seguem a visão correta e preparam o chão da mente e da concentração corretas. É difícil imaginar tentativas bem-sucedidas que levem a uma vida pura neste senso tradicional, sem um processo de mudança da personalidade envolvendo a diminuição de necessidades débeis e uma diminuição do vínculo com a decepção. Na ausência de um contexto mental apropriado e num clima de autoritarismo (ambas, condições do nosso backgroud cultural), moralidade torna-se moralismo, entretanto, que leva não ao aumento da transcendência da deficiência (ou seja, desapego), mas à repressão.
O revigorar dos EUA puritano tem se caracterizado pela crise da repressão, e muitas terapias conduziram a isto - proclamada pela psicanálise - caracterizam-se não pelo controle do comportamento mas pela perda dos controles; não pela inibição mas pela expressão.
Igual a outras terapias contemporâneas, Gestalt-terapia é de considerada um modo de consciência através da expressão - não apenas verbal mas motora-gestual, imaginal, e comumente entendida como artística. O que é geralmente esquecido, entretanto, é que a teoria Gestalt envolve um não menos importante mas sutil e menos explicado elemento de inibição voluntária: inibição da conceitualização obssessiva, da manipulação, e do comportamento inautêntico (“jogos”). Sim, “vale tudo”, na abordagem Gestalt contanto que a experiência seja comprometida, assim como sua expressão, exagerada “acting out”, dramática como deve ser no contexto da experiência guiada, não é nada que possamos denominar de regra da Gestalt. Exatamente porque a característica do comportamento inautêntico dos modos neuróticos de ser-no-mundo envolvem uma tentativa de evitar certas experiências, a atitude do terapeuta é convidar ao desfazer dessas evitações, um “fique com isto”, ainda que dolorido e confuso. Na visão de Perls, nossa consciência é restringida porque não aceitamos o nosso sofrimento, e o processo terapêutico necessariamente implica (como nas tradições espirituais, devemos citar) um elemento de austeridade. A austeridade básica, podemos chamar assim, é a não-indulgência do que as tradições espirituais chamam de ego, e Perls chama de caráter e equalizar com um sistema de respostas fixas obsoletas que interferem com a função do organismo. Para ele (e isso foi uma visão impopular na época) o ser humano ideal seria além do caráter - uma frase que traduziríamos como: “funcionando no nível transpessoal”.
Como Perls era um não-dualista fervente - no sentido de negar “a superstição de que haja separação, ainda uma inter-dependência entre duas substâncias, o mental e o físico” (Perls, 1969, p.2) - ele preferira a palavra organismo à alma ou Self. Para ele, “mente-matéria como unidade é verdadeiramente um organismo.” Sua escolha da terminologia (emprestada do Smuts [1926] e Goldstein [1939] sem dúvida contribuiu para uma impressão generalizada que sua visão era materialista ao invés de espiritual (ou seja, transpessoal). Essa presunção é facilmente desfeita se considerarmos sua visão de consciência - junto com espaço e tempo - como um aspecto fundamental do universo dentre seus diferentes níveis de organização. Além do mais, a integração das visões materialista e espiritual em seu pensamento é conveniente com suas afirmações a seguir:
“Thus matter seen through eyes of mine
Gets god-like connotation”
Seja a matéria vista pelo olhos meus
Ganha conotação divina
(Perls, 1969)
e (referindo-se ao tempo, espaço e consciência)
“The triple God is ultimate
He is creative power
Of all the universal stuff.”
O Deus triplo é definitivo
Ele é poder criativo
De todas as coisas universais.
(Perls, 1969)
se a moralidade da Gestalt-Terapia é aquela da autenticidade e não-manipulação (do self ou outro), seu treinamento da percepção (awareness) pode ser resumido na afirmação que J. S. Slmkin propôs como uma síntese da abordagem: “Eu e tu, aqui e agora.” Em outras palavras, é uma prática de consciência no relacionamento (ainda que às vezes seja uma relação internalizada). Nisto se diferencia da prática do Budismo da consciência em isolamento. Assim como um treinamento em percepção, o sétimo item de “Caminho dos Oito Passos” é um processo transpessoal, a prática da consciência (awareness) em relacionamentos pode ser descrita, da mesma forma que a Gestalt-terapia em geral, como trazer o transpessoal para o interpessoal.
O cultivo da consciência do aqui-agora em Gestalt-Terapia anda de mãos dadas com outro tema compartilhado pelas psicologias tradicionais, Budismo em particular. Chamaremos isso de “abertura”: estar consciente do que ocorre aqui e agora em nosso campo de experiência. Envolve uma atitude básica de permissão - uma aceitação indiscriminada da experiência, que é um “abandonar” ou deixar de lado os padrões ou expectativas. Expressa-se na Gestalt-Terapia de inúmeras formas, diferente do ato de ser consciente sem manipulação pessoal.
Uma dessas formas é o que Fritz Perls chamou, depois de S. Friedlander, “indiferença criativa” (1966). Com isso, ele quis dizer a habilidade de permanecer num ponto neutro, desconectado das polaridades conceituais e emocionais opostas em jogo em cada momento da consciência. Perls demonstrou uma medida de indiferença criativa sendo um psicoterapeuta, ao ser capaz de ficar no ponto zero sem ser pego pelos jogos de seus pacientes. Acho que o ponto zero é um refúgio do terapeuta Gestalt no meio da intensa participação - não apenas uma fonte de força mas um suporte pessoal definitivo.
Um outro aspecto da abertura em Gestalt-Terapia é a aceitação da não-experiência; a aceitação do nada (nothingness). Perls deu bastante importância a isto, a ponto de descrever o processo terapêutico como um caminho “do vazio estéril ao vazio fértil” (Perls, 1969). Por “nada” (nothingness) ele quis dizer não-coisa (no-thingness) - ou seja, awareness não-articulada indiferenciada - e falando em vazio fértil ele quis dizer que estar na casa da consciência indiferenciada é a fundação ou chão para uma figura saudável da awareness articulada no aqui-e-agora. Em várias ocasiões os Gestalt terapeutas observam a sequência de “nadas” (nothingness) - explosões psicológicas, muitas como uma parcial morte-renascimento, e mesmo Perls sabia bem que “morrer e renascer não é fácil” (Perls, 1969), ele viu esse processo eminentemente transpessoal como a essência da terapia, e também da vida. Seu envolvimento completo nisso se reflete em uma de suas pinturas a óleo que deixou: um auto-retrato onde ele se vê abraçando seu próprio esqueleto.
Não apenas a Gestalt-Terapia encontra o Budismo (e outros caminhos espirituais), sua prescrição de relações virtuosas e cultivo da consciência (awareness), a awareness da dor e da morte em particular, também compartilha com antigos protótipos uma encarnação de feroz guru, que espeta e pisoteia o ego humano. Hesse ressaltou que existem professores apaixonadamente orientados para o exterior, e professores cuja compaixão fala através do giz. Perls, como um Mestre-zen arquetípico, foi um professor habilidoso, foi um mestre da redução do ego antes que Oscar Icharo utilizasse o termo “Arica Training”. Sua tribo cultivou essa habilidade, levando tão a sério a ponto de não pensarmos que é uma técnica. Mais do que um Mestre-zen, entretanto, Perls lembra o primeiro individuo transpessoal e terapeuta, o xamã; e xamanista, também, é o exemplo do papel do terapeuta gestalt como um guia-experiente, um condutor consciente. Este também é o papel daqueles que trabalham com a consciência corporal, com fantasia, ou quem oferece a experiência de meditação guiada; e podemos dizer que a terapia contemporânea está se tornando extremamente xamanista em estilo, e em outras referências. O que faz o papel do terapeuta gestalt particularmente xamãnico, entretanto, é a versatilidade de mover-se organicamente entre os domínios sensorial, afetivo, cognitivo, interativo e imaginativo, potencialmente, o domínio da consciência em si mesma.
Além do papel de guia-experiente, entretanto, o terapeuta gestalt tende a carregar, em um grande ou menor quantidade, o imprint de Fritz Perls em seu ser; e Perls era um xamã em mais de um papel: em sua confiança na intuição, sua orientação cientifica-artística, sua combinação de poder e simplicidade, seus modos incomuns e desafios da tradição, sua familaridade com paraísos e infernos, e talvez o mais importante, sua capacidade dionísica de apreciação da entrega. Acho, também, que ele não era diferente de um verdadeiro xamã quando se descreveu como “50 por cento filho de Deus e 50 por cento filho da puta.” O transpessoal dentro do interpessoal.