Ao voltarmos nossa atenção ao tempo, podemos perceber aí uma característica inerente, própria a ele. Esta característica nós a encontramos como ritmo.
Ritmo e tempo. Tempo e ritmo. Tempo é ritmo.
Sem ainda um olhar e uma reflexão aprofundada, vamos considerar, como ponto de partida, que tempo é ritmo.
E se é ritmo, imediatamente vamos constatar que há muitos ritmos, talvez, infinitos ritmos.
Há infinitos tempos?
Mantendo essa pergunta suspensa, vamos nos dirigir para um outro desdobramento desta noção de tempo como ritmo: há ritmos, há tempos que são comuns aos homens. O tempo comum, compartilhado pelos homens é, sem dúvida, aquele dos anos, dos dias, das horas, das estações. O tempo compartilhado se refere a uma dimensão da existência dos homens em que cada um de nós encontra-se lançado no viver segundo as referências de todos os homens; cada um de nós, neste “tempo do relógio”, neste “tempo comum de todos e do mundo”, vive e é como todos os outros.
Ser-como-todos-os-outros não nos lança necessariamente na alienação do que é próprio, do que diz respeito a cada um; cada um de nós, no tempo, no ritmo de ser como todos são pode viver, também o encontro, a comunhão, o compartilhamento.
As atividades vividas pelos grupos de pessoas a propósito de comemorações, de decisões, de discussões, não se constituem, a princípio, de acontecimentos de massa, mas acontecimentos em que cada homem é convidado, algumas vezes convocado, a se colocar a respeito de questões que afetam o grupo do qual ele faz parte.
Daí, nós podemos designar estes acontecimentos vividos por grupos de homens como indicadores de um tempo: é tempo de decisão, é tempo de comemoração, é tempo de dançar, é tempo de lutar, é tempo de trabalho, é tempo de descanso.
No entanto, há ainda uma compreensão em relação ao tempo, (e quando dizemos compreensão queremos indicar a natureza essencial de algo) que está presente nesta noção de tempo como momento dos homens compartilharem algo em comum, e que, além disso, serve como suporte, como sustentação para o compartilhamento, e que não está explicitado, não está percebido, nem plenamente compreendido por nós.
Quando dizemos (e vivemos) um tempo de decisão, um tempo de dança, um tempo de trabalho estamos em contato com um acontecimento – decidir, dançar, trabalhar – que se inicia, num dado momento, e que cada um de nós vive na singularidade e particularidade solicitadas pelo acontecimento.
Então, dançar, decidir, trabalhar são modos-de-ser que cada um de nós vive, só ou com os outros, e, por ser modo-de-ser, nos transforma inteiramente no dançarino, no trabalhador; somos, aí, o humano dançarino, o humano trabalhador em que cada um deles constitui uma maneira.
Dançar, decidir, trabalhar, são acontecimentos que irrompem como únicos, como marcantes e que dominam e predominam em nossas vidas enquanto estiverem presentes.
Ao dizermos, então, que é tempo de dança, tempo de trabalho estamos subentendendo dois outros aspectos do acontecer da dança, do trabalho, da decisão: a de que eles irrompem e interrompem, fraturam um outro modo de viver e nos transformam inteiramente naquele que dança, que decide, que trabalha:
É tempo de trabalho, é tempo de dança, não é uma convocação externa, formal e artificial; pede, de cada um, o se transformar, o se permitir que brote e se desenvolva em si o modo-de-ser do trabalhador.
Dizer que tempo, então, é a irrupção de um acontecer próprio e único e que tempo é, também, a consolidação deste acontecer como modo-de-ser, este dizer do tempo nos convida, nos obriga a novas interrogações: 1) como a irrupção é vivida pelo homem; que implicações ela traz a ele; o que afinal, vive o homem ao ser o protagonista de uma irrupção, de um novo tempo, de um outro tempo. 2) como se dá a instauração da nova possibilidade de ser irrompida? É uma questão de repetição? O que quer dizer, na verdade, repetir? Repetir é estabelecer um hábito? Hábito é a transformação de novo em conhecido? Conhecido é o automático, o familiar? Mas o automático, o familiar, o já-aí-dado e sabido é plenamente compreendido na sua naturalidade?
Ao nos voltarmos para compreender a irrupção de algo novo para o homem, vamos na verdade compreender, simultaneamente e com toda clareza, a condição de ser homem e o quer dizer tempo na sua essência, já indicada como irrupção: o homem, ao ser lançado no novo, viver a importância de poder ser quem sempre foi, o que nada lhe valem os recursos acumulados até então e, a ansiedade, a expectativa, a angústia do novo, do desconhecido que lhe vem ao encontro e em relação ao qual ele se vê voltado para receber, mas este momento, este instante de viver o novo, o futuro na acepção própria da palavra, não se esgota num mero acontecimento emocional, psíquico, sem valor existencial. Na verdade, é a dimensão existencial do viver o novo tempo, o novo modo-de-ser que necessitamos explicitar: viver o novo tempo, se abrir ao futuro é, inevitavelmente, é necessariamente deixar-se morrer para o modo-de-ser habitual e permitir-se viver, na solidão e no desamparo a fé de que é possível ser, propriamente, verdadeiramente, realmente aquele que o vazio, o nada, o ainda-não-ser anuncia.
Devemos, agora, observar alguns aspectos deste momento da existência que designamos como novo, como futuro, como tempo.
O confronto do homem com o nada e o inevitável, às vezes lento, reenvio dele para uma possibilidade de ser que se anuncia e que o convida, às vezes, inicialmente, o ameaça, não se constitui, este confronto num momento, excepcional, raro, extraordinário no existir.
Viver, enquanto existir, enquanto ser, como homem, uma aventura, uma disponibilidade, uma inevitável condição de se sensibilizar com aquilo que não é ele mesmo, implica estar mergulhado no encontro com o diferente de si, na convocação de ser tocado e ser chamado a conhecer, a explorar, a nomear o que se apresenta, e que, por isso, faz do homem, como existir, ser angústia. Mas por que esta situação de nomear, portanto, de acolher, de receber, de conter em si é angústia? Porque angústia é viver a ameaça de não-ser si-mesmo, homem.
Então, ser homem é ser chamado, “de dentro”, a receber o diferente de si, como tarefa de iluminar, com a luz do interesse e do entendimento, o sentido de ser daquilo que não é ele-mesmo. E mais.
Que o ser homem, ele-mesmo, só tem sentido, não como prescrição, mas como condição aí na tranqüilidade e na segurança de poder-ser, ao se colocar, ingenuamente, incompreensivelmente, sensível ao apelo do que parecia estar esgotado no sentido de ser, e que o desperta para um novo olhar, desafiador, solicitador.
E, tempo, então, não é simplesmente, o registro, pontuado, dos fatos lá, no além, numa régua plana e uniforme, mas, é a inesgotável, a imprevisível explosão de possibilidades de ser, que nós homens, para angústia e espanto nossos, somos destinados a protagonizar.
Tempo é ritmo, sim. Mas não é ritmo só conhecido e instituído. É ritmo por nascer; por nascer e ser oferecido por cada um de nós que vive a angustiosa experiência de escutar e acolher o novo sentido de ser de algo, de alguém, de nós mesmos.
No entanto, como dar conta deste enorme e inevitável variedade de “tempos” que nossa condição de homens vive?
Cada um de nós, como homem, está destinado a viver o impacto do novo, a ser convocado para anunciar este novo aos outros homens e viver a enfadonha tarefa de transmitir a boa nova.
Bem, porque um novo tempo nos implica inteiramente, no sentido em que sem a nossa completa adesão, a transformação é falseada e não se dá, para que nos tornemos um lugar em que um modo-de-ser nosso se consolide e, portanto, um novo sentido de ser do mundo se mostre através de nós, é preciso insistir.
Mas o que quer dizer insistir e por que insistir é o caminho para a consolidação de um novo sentido de ser, de um outro sentido, da verdade em suas infinitas faces, mas sempre, e a cada vez, a verdade absoluta?
Insistir. A palavra insistir, nos seus ecos longínquos que nos alcançam, a nós que a cada momento de iluminação do sentido de ser, queremos nos poupar desta tarefa angustiante e, desta tarefa que nos atrai e nos hipnotiza, a palavra insistir já carrega na sua constituição o seu sentido: ser em direção a uma interioridade, ir em busca da constituição de algo em si mesmo; assim como existir indica ser, estar voltado para fora, sensível a tudo que não é si-mesmo.
Nós, homens, seres do existir e, por tal condição, na possibilidade iminente de sermos, nós homens, o que não somos em nós - mesmos, mas abrigo humilde dos “outros” seres, exatamente por sermos existência somos sensíveis à insistência.
Existir não é disponibilidade para tudo. Não é sensibilidade para qualquer coisa.
Cada um de nós porque nasce e, portanto, eclode e funda um novo tempo, um tempo que é novo porque anuncia, pela presença de cada um, uma peculiaridade de ser, existe, isto é, permanece aberto e sensível de uma maneira especial, específica: nos momentos em que somos abertura medrosa encobrimos o sentido de ser do que nos toca considerando-o já conhecido, considerando-o como “nada mais do que...”; nos momentos de abertura, de disponibilidade nos mobilizamos para escutar o que o ser nos diz através de um ente.
Este escutar faz o nosso existir ser uma insistência, ser um aprofundamento da tarefa de recolher todos os elementos que o ser sussurra para cada um de nós.
Insistir, então, é repetir, é pedir novamente que aquilo que é se mostre e para que nós possamos compreendê-lo, quer dizer, que nós possamos chegar até ele.
Mas esta compreensão não se dá por acaso: como já dissemos, nossa abertura, nossa sensibilidade acontece, sempre, de uma determinada e específica maneira – porque nascemos aqui e não lá, porque somos homens e não mulheres, porque somos desta família e não de outra – e esta nossa condição nos leva necessariamente a elegermos, a sermos tocados e chamados por determinadas pessoas, certas situações, certos eventos.
Até aqui, chegamos a uma situação que torna a articulação existir – insistir – sensibilidade e compreensão – um processo, no fim das contas, pré-determinado, pré-estabelecido: o nosso nascimento, a nossa eclosão, aparentemente anunciada de uma renovação, de uma revolução, parece estar a serviço de uma herança, nos situa antecipadamente num certo modo de existir e de se afirmar.
O tempo, esta explosão surpreendente de um novo modo-de-ser, que anuncia a promete um novo mundo, parece se resumir a um instante isolado, extemporâneo, sem desdobramentos.
Aliás, na sua constituição original, o tempo é instante: único, sem passado, sem futuro. Uma expressão direta de descontinuidade.
E o que faz com que cada um de nós viva, numa relação superficial e pouco reflexiva, uma percepção de que o tempo é, pelo contrário, continuidade e duração?
A continuidade, a duração são, também, características do tempo. No entanto, elas são expressões de um duro, laborioso, angustiante processo de insistência.
A insistência, como vimos, é o interesse, no existir de cada um, em eleger uma direção de vida e certo aprofundamento na vida.
A continuidade, a duração, a permanência se constituem não porque cada um de nós herdou e está reproduzindo certo tipo de presença no mundo com as coisas e com os outros; se fosse assim, se a permanência, a duração acontecessem como resultado de uma repetição automática, se insistir fosse retornar a cada vez como um automático, a relação do homem com a sua obra seria superficial, frágil e não vivida por ele como uma conquista de trabalho.
Um modo-de-ser, uma obra, uma vida estão aí e de certa forma permanecem porque o insistir é, a cada vez, a convocação, como se fora a primeira vez, que chega a nós de reconstruirmos o que já fora construído, de redescobrirmos o que já fora descoberto, não só porque esquecemos como se constrói, perdemos os caminhos da descoberta, nos acomodamos no já conquistado, mas porque nós, o mundo e os outros somos diferentes a cada momento, pedimos a nós mesmos para sermos escutados de um novo modo, porque, apesar de sermos os mesmos – continuidade constituída a partir de uma descontinuidade original e essencial - somos, sempre, um pouco diferentes, as transformações nos atingem, os instantes nos assaltam, a nós, homens, mundo e acontecimentos.
Insistir não é apenas uma característica derivada de uma herança e que nós, homens, devemos carregá-la (ou nega-la) como um fardo, no mínimo, incompreensível.
Ao sermos aqueles que se constituem como continuidade, como permanência pelo insistir, ao sermos aqueles que constituem uma obra – permanência de um sentido, de um modo-de-presença – conquistamos, não definitivamente, mas com confiança, um habitar. A angústia de nos sentirmos ameaçados pela precariedade dos instantes – que são insensíveis aos nossos apelos de permanência e de continuidade – esta angústia, não é eliminada, mas recebe lufadas de tranqüilizarão exatamente quando tornamos nosso um lugar de insistência: um lugar de insistência, que nasceu por herança, alienado de nós, transforma-se em nosso lugar, em nossa casa. Habitar é tornar um lugar anônimo e perdido em nossa casa; habitar é viver um lugar como seu – acolhedor e íntimo; seguro e conhecido. E hábito, então, é habitar um modo-de-ser, de tal maneira que o hábito não necessita de nossa atenção – ele já é nosso; ele já é nós.
Assim, ao vincularmos o tempo ao homem estamos sugerindo alguns sentidos a ele, tempo, que vamos ressaltar, para terminarmos a nossa comunicação.
Tempo não é só dos homens. Tempo é uma dimensão própria, inerente a tudo que é, inclusive o homem.
Mas é só no homem que o tempo adquire uma peculiaridade! Cada um de nós, homens, por não poder ser igual aos outros homens, inaugura, pelo simples fato de estar-aí, m novo tempo, quer dizer faz do tempo uma realidade: a transformação, a ruptura, definitiva, irreversível. Porque, agora podemos contatar e afirmar: sem transformação radical (pela raiz), sem mudança irreversível não há tempo, há eternidade.
Os outros “seres”, os outros entes vivem um tempo que é único e permanente; por tal peculiaridade, podemos, de certo modo, dizer que os outros seres são eternos – porque não vivem o tempo – se constituíram de um certo modo, numa certo ritmo de ser e se mantém como tal – não há, neles, uma transformação.
Com o homem, o tempo tem um lugar próprio e inerente a ele: porque existir é conquistar, a cada momento, um modo-de-ser, uma segurança de ser, o tempo é a expressão mesma destas conquistas que fazem do homem um ser a se constituir, um ser que tem na transformação uma dimensão essencial.